(O exato momento em que eu recebia o hábito de noviço dominicano em BH.)
Vez por outra
minha memória passeia lá pelas bandas da Serra da Piedade.
Isto porque
por volta do primeiro semestre de 1961, eu e meus companheiros de noviciado
fomos descansar lá pelas bandas da tal “Serra”, para nos aliviarmos um pouco
das preções da vida conventual impostas pela Santa Regra Dominicana sobre o
nosso cotidiano de frades principiantes.
Se bem me
lembro, nos levantamos ainda de madrugada. Os sinos do convento badalaram
efusivamente por volta das quatro horas da madrugada. Dirigimo-nos à capela;
rezamos as matinas; tomamos um café substancial e entramos na velha
“jardineira” que nos conduziria à tão decantada “Serra”.
A discrição
monástica amainava a euforia que permeava
nossas almas ansiosas por um pouquinho de liberdade. Enfim, já estávamos vivendo enclausurados há mais de
quatro meses naquela santa casa de São Domingos em Belo Horizonte.
O “choffer”,
como chamávamos o motorista à época, pos-se atentar ligar a velha “Jardineira” que se negava,
veementemente, a pegar.
Contudo,
depois de algumas tentativas o motor deu sinal de vida. Pegou e pusemo-nos a
estrada. A tal ‘Jardineira” andava tão devagar que imaginava comigo mesmo:
- Não seria
melhor irmos a pé?
Mas mantive um
semblante de paz como é de bom tom a um aprendiz de frade.
Duas ou três
horas depois de uma viagem atribulada pelo desconforto da poeira e a lentidão
de locomoção do nosso veiculo,nos deparamos na beira da estrada com três
senhoras de semblante angelical que nos pediram carona. Eram três irmãzinhas de
Jesus da congregação fundada por Charles de Fouceuld. Ficamos muito encantados
com a essência da vocação dela:
- Viver a vida
oculta de Nazaré.
Na realidade a
época eu desconhecia essas ricas peculiaridades de cada uma das inúmeras
maneiras de viver a vida religiosa na Igreja Católica.
Mas de
repente, a “velha Jardineira” parou e as três freirinhas desceram e logo
saltaram na boleia de um caminhão que transitava pela estrada e partiram,
deixando-nos encantados.
Fiquei sabendo
depois que antes de elas abraçarem a vida religiosa, uma era medica, a outra
era engenheira e a terceira era advogada. Enfim, eram três mulheres de muito
valor que se dispuseram a largar tudo para seguir Jesus com radicalidade.
Bom!
Alguns minutos
depois estava-mos aos pés da “Serra”. Descemos da “Jardineira” e pusemo-nos a
escala-la lentamente.
Pouco a pouco
o cansaço e a fome se apoderaram de nós. Quanto mais subíamos, mais distante
nos parecia o pico da “Serra”.
Eu mesmo já me
perdia em murmúrios secretos. Pois um frade, mesmo que principiante, não deve
reclamar de nada, nem tampouco deixar transparecer tristezas. Mas, embora
contrariadíssimo e aborrecidíssimo, lá ia eu subindo, subindo rumo ao cume da
“Serra” onde ansiava usufruir um pouco de maior intimidade com Deus.
Já se fazia
crepúsculo quando chegamos ao topo da amada “Serra” e à frente da bela capela
de Na Sra da Piedade. Então, nos desfizemos das cargas de mantimentos que
trazíamos nos ombros. Gente, o vento assoviava estridente e gélido, era frio
pra dá com pau! Imediatamente após a chegada, nos introduzimos no átrio da
capelinha e nos posemos a cantar às Vésperas e as Completas, que são orações
que concluem o dia de oração de qualquer frade. Logo em seguida nos lançamos,
cada um em seu catre, sem ao menos nos lembrar que estávamos famintos.
Meu Deus!
Nunca um alvorecer fora, em nossas vidas, tão esperado. Porque nem o frio
congelante, nem a fome de lobo faminto,
nem tampouco os abusados pernilongos nos deram um só instante para pregarmos as
pestanas durante a noite inteirinha.
Portanto, mal
soara a primeira badalada do sino da capelinha, saltamos dos triliches e sem
lavar a cara ou fazermos a higiene bucal, no dirigimos, de imediato, à
capelinha para cantarmos as “Matinas”, dando
assim inicio aos primeiros louvores
diários de um frade . logo em seguida fomos degustar a primeira alimentação do
dia que nós mesmos tratamos de preparar: Um pãozinho amanhecido, umas
bolachinhas daquela bem simplesinhas, um chazinho feito com água de bica e um
cafezinho bem ralinho.
Após essas
primeiras façanhas do dia, nos pusemos a meditar ao ar livre e a contempla as
belezas da natureza que Deus criou.
Passada a fase
do imenso encantamento, nos dividimos em equipes para dá encaminhamento as
tarefas do dia. Coube a mim, em religião chamado frei. Boaventura, ao padre
mestre ( frei Emammuel Maria Retumba), a frei Leandro, frei Guido e a frei João
Evangelista limparmos a velha capelinha
muito empoeirada.
À medida em
que a limpeza se procedia, descobri atrás do altar-mor um velho e lindo
crucifixo jogado às traças. Chamei o padre mestre e mostrei-lhe o belo crucifixo, dizendo lhe:
- Podíamos
leva-lo para a nossa capelinha do noviciado. Então, ele disse-me:
-Para tanto você
terá que pedir o crucifixo ao frei Rosário. Você tem coragem?
Disse-lhe sorrindo:
-Tenho! Por que
não.
Então,
zombando de mim, disse-me:
-Então, não
perca tempo, vá logo!
E lá fui eu
todo serelepe rumo a ermida de frei Rosário.
Não me
lembrara em momento algum de sua fama de bravo.
Ingenuamente,
pus em sua bater à sua porta sob os olhares curiosos de meus companheiros de
noviciado. De repente a porta se abriu e eu me encontrava face a face com uma
figura carrancuda de dois metros de altura.
-Bom dia!
Disse-lhe eu sorrindo.
-Bom dia!
Respondeu-me aos berros.
- O senhor
poderia dar-me este belo crucifixo para colocarmos na capelinha do noviciado.
Esbravejando
respondeu-me:
- Você não tem
o que fazer, coloque o crucifixo imediatamente onde você o achou.
Virou-se e
bateu a porta em minha cara. Pra dizer a verdade em momento algum fiquei
zangado com ele. Mas muito me aborreceu a gozação explicita dos outros frades.
Coloquei o crucifixo onde achei e não toquei mais no assunto.
Por fim,
completada nossa rápida estadia prevista na “Serra da Piedade”, arrumamos
nossas tralhas e retornamos ao convento de origem para darmos prosseguimento
à nossa aprendizagem religiosa nos
moldes da regra de São Domingos.
Passados uns
três dias de nosso retorno ao convento, Pe. Mestre bateu à porta de minha cela,
abriu-a e disse mim:
- Frei
Boaventura, o Frei Rosário está lhe esperando lá na porta do noviciado.
Embora
arredio, ou melhor, tremendo nas bases, respirei fundo e dirigi-me à porta do
noviciado. Ao abri-la, muito encabulado, o cumprimentei com um discreto aceno
de cabeça e um sorriso amarelo, e ele pois se a falar em alto e bom som:
-frei
Boaventura, aquele crucifixo que você gostou não posso dá-lo porque não me
pertence. Mas, trouxe este que acabei de ganhar porque penso que ficará muito
bem na Capelinha de vocês. Boa tarde!
Gente, o
presente era de veras belíssimo! Foi uma grande festa no noviciado.
Ah!
Boquiabertos com esse inesperado arroubo de generosidade do nosso nobre ermitão
turão, eu e meus companheiros de noviciado, alem de perdidos em espantos de
alegria, apreendemos, profundamente, que também por trás de um homem grosseiro pode
haver um ser generosíssimo.
Então, até a próxima
crônicasinha da época desse ex-noviço estrambelhado.
Paz e bem!
Montes Claros
(MG), 09-04-2015
RELMendes